10 julho 2021

O Espelho

 Este texto já foi prosa, hoje é poema. E está no livro Vozes Escarlate, do Coletivo Vozes Escarlate (Hecatombe, 2021).



o espelho

Dentro desse espelho há um medo.
O meu medo.
Medo de olhar e não me reconhecer ou, pior,
medo de me reconhecer.
Medo de ver aquilo que dizem sobre mim, mas
não quero acreditar que seja verdade.
Medo de ver as sombras escondidas em meus
olhos, que luto diariamente para camuflar.
Medo de ver as rugas me dizendo que já não sou
menina para brincar de viver.
Medo de ver falhas de caráter nas minhas falhas
de expressão.
Medo de ver os defeitos que minha pele calejada
pela dor acumulou.
Medo.
Sempre o medo.
Dentro desse espelho há sempre um medo.
O meu medo.
Medo burro, comprido, solitário.
Medo angustiante, medo fatal.
Medo de que, vendo minha face sombreada,
cheia de rugas, com falhas e defeitos, acabe descobrindo
que essa sou eu mesma nua e crua.
Sem disfarces e sem desculpas, eu sozinha, nua e
crua, louca de pedra.
O espelho me mostra olhos vermelhos.
Os olhos vermelhos que ele disse que ficavam
bem em mim.
Mas eu não concordo.
Não concordo que a tristeza fique bem em mim.
Eu quero sorrir, quero ser feliz, por que estou chorando?
Louca de pedra.
A face que o espelho espelha sou eu, por dentro e
por fora, sem disfarces e sem desculpas.
Dentro desse espelho há um medo.
O meu medo.
Medo de tudo e mais um pouco.
Medo da vida, medo da morte, medo da alegria e
medo da dor.
Dentro desse espelho há um medo terrível de ser
e de não ser.
Medo terrível que me impede de seguir em frente,
medo terrível.
Mas vou acabar com ele, sim, vou acabar com
ele.
Louca de pedra de olhos vermelhos, fecho o
punho e quebro o espelho.
Dentro desse espelho havia um medo.

Francine Cruz

Ilustrações: Débora Bacchi



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